Espiritualidade Indígena e Cristianismo

Espiritualidade Indígena e Cristianismo

ESPIRITUALIDADE INDÍGENA E CRISTIANISMO

 – Contribuição ao Encontro Nacional de Juventude e Espiritualidade Libertadora –

Fortaleza 1-4/05/14

 

INTRODUÇÃO

Somos membros do CIMI-Conselho indigenista Missionário, desde a sua fundação. Agradecemos o convite para participar deste importante encontro.  Acreditamos que nossos 40 anos  de experiência missionária junto aos Povos Indígenas venham a ser uma contribuição significativa para todos aqui.

Nestes dois dias, hoje e amanhã, queremos apresentar dois momentos: algumas características da espiritualidade indígena, principalmente a partir de nossa experiência dentro e fora do Brasil e a interação desta espiritualidade com a prática cristã.

Hoje queremos salientar o aspecto libertador das culturas e da espiritualidade indígena. Deveras dentro da sociedade globalizadora em que vivemos, a espiritualidade indígena se apresenta como uma alternativa viável em vista de uma sociedade justa e fraterna e de um futuro para o nosso planeta.  Será que a alternativa do BEM VIVER é algo que pode ser vivenciado no mundo em que vivemos?  Como?

Amanhã pretendemos relacionar a espiritualidade indígena e o cristianismo no seu aspecto histórico e na época atual e propor condições tanto na vida dos Povos Indígenas como também na Igreja, para que este encontro se transforme em verdadeiro diálogo e aliança em vista de alternativas ao mundo em que vivemos.

Como missionários estamos convencidos que não são somente os índios que precisam de nós, da solidariedade da sociedade e das igrejas, mas são estas que precisam dos povos indígenas e de sua espiritualidade. Precisam para encontrar alternativas em vista de uma sociedade justa e fraterna e em vista de uma natureza amada e respeitada.

É lógico que este confronto é dialético; que os Povos Indígenas não vivem e não propõem uma sociedade sem pecado e sem defeitos. Porém o encontro com eles nos abre para o diferente e, neste rumo, para as alternativas. A  chamada civilização que nós temos não é o estágio último da evolução e nem o caminho para um presente e um futuro feliz. Nós somos chamados a rever os nossos parâmetros se quisermos ter um futuro e os Povos indígenas são, nesse processo,  de grande ajuda.

Dizia Padre Atiliano Ceballos Loeza no VII Encontro Continental de Teologia Ìndia em Equador:

Umas das grandes contribuições que nossas comunidades (Mayas, Quechuas, Aymaras, Kichuas, Warao, Náhuatl, Mapuche, Zapoteco, Guarani, Totonaco, Kuna, Lenkas, Huitotos, Emberá, Avá Guarani, Guarani Mbya, HuarpeMilcyac, Kaigang, Neza, Yanomami, Qom, Meepha ou Tlapaneco, e tantas e tantas outras comunidades assentadas nos 4 pontos de nossa Ameríndia) dão é a crítica ao sistema neoliberal dominante.  Nós, povos originários, temos uma cultura da vida e  não de morte.  Decrescimento, des-urbanização, des-colonização, des-aprender é o grito que sobe de todos os cantos da nossa Pátria Mãe Grande, como estandarte para nossas lutas e aspirações.  Nestes últimos meses um bocado de Bispos Eméritos(Tomás Balduini, Pedro Casaldaliga, José Maria Pires, Samuel Ruiz Garcia entre outros) também nos convidam a des-ocidentalizar nossos ritos eclesiais.” No V Encontro de Teologia Índia em Manaus com o tema: “A Força dos Pequenos, vida para o mundo”, os representantes dos Povos Indígenas no Brasil : Karipuna, Galibi-Marworno, Makuxi, Wapixana, Xukuru, Guarani, Aikewar, fizeram a releitura de sua história e descobriram a presença de Deus que lutou ao lado deles e os animou na conquista dos seus direitos. É a espiritualidade que gera vida, que é resposta aos graves problemas que o povo enfrenta.

            Frente às propostas da sociedade neoliberal, a espiritualidade indígena mostra o caminho do BEM VIVER: “Viver de maneira simples, sem luxos, sem esbanjar, é um aporte profético de nossos povos ameríndios.  É saber que nós somos parte de um todo, educar-nos à simplicidade e na autêntica humildade.  Na medida em que as nossas comunidades mantém mais apego e proximidade com a Mãe Terra, crescerá o grau de simplicidade em nossa vida.  Assim o assinalam os jovens reunidos com o Papa Francisco –que exige sobriedade para a igreja- em julho deste ano: “Queremos e precisamos muito pouco, Santidade.  Só queremos viver com dignidade e paz em nossas terras e territórios”.  Será que isso é pedir muito?

Na exposição que segue vamos encontrar elementos específicos desta espiritualidade libertadora e alternativa. Queremos nos preparar através de uma oração que nos abra para o diferente:

 

SOMOS DIFERENTES

 

Eu te agradeço, Deus, Pai,

porque nos criastes a todos diferentes.

Os nossos rostos têm todas as cores,

e a tua luz reflete-se nesta variedade.

Agradeço-te, Senhor,

porque nos deste  línguas diferentes

que expressam a maravilhosa diversidade da vida,

e falam de ti em mil formas.

 

O meu irmão é diferente de mim,

Isso é muito bom, é uma riqueza para todos.

Essa diferença obriga-me a me esforçar

para compreendê-lo,

e ele estará obrigado a se esforçar

para me entender,

e isso nos fará  crescer aos dois.

 

Eu te louvo, Senhor,

porque podemos nos descobrir uns aos outros

e podemos viver a alegria de nos encontrar;

partilhar o que somos e oferecer-nos  mutuamente.

 

E além de tudo te agradeço

porque Tu és a nossa união:

tu estás presente em cada homem e em cada mulher,

Em cada língua e em cada cor de pele.

Tu és Deus, e nos unes em Jesus, teu Filho,

Irmão de cada um e uma de nós. Amém!

ESPIRITUALIDADE INDÍGENA – ALGUMAS CARACTERÍSTICAS:

Quais são as flores e os frutos que as comunidades indígenas do continente aportam, a partir da fé e da cultura para uma nova humanidade?

 

  1. 1.     UNIÃO COM A NATUREZA e profundo respeito por ela. Os indígenas veem a Natureza como o lar de todos nós, humanos ou não. Nós somos parte dela e ela de nós.  Portanto não podemos usar e abusar dela para nosso benefício.  A forte espiritualidade indígena se expressa no Bem Viver (Sumak Kawsay) que busca uma vida feliz com inter-relações em sintonia com o cosmos.
    “Nós povos e nações originários temos sabedoria para viver, conviver e sobreviver com a Mãe Terra.  Trata-se de uma sabedoria milenar, aprendida e experimentada por séculos e transmitida de mães e pais às filhas e filhos.  A natureza tem sido para nossos povos, verdadeira Mãe e Mestra: “Dos tatus aprendemos a fazer túneis. Dos castores, aprendemos a fazer diques.  Dos pássaros aprendemos casas.  Das aranhas, aprendemos a tecer.  Do tronco que rodava ladeira abaixo, aprendemos a roda. Do tronco que boiava à deriva, aprendemos a nave.  Do vento, aprendemos as velas.[1]”  Não se trata de conhecimentos adquiridos nas aulas da escola, senão mais bem, de possibilitar modos de vida mais sustentáveis e respeitosos com tudo o que nos rodeia.

A Terra é, para os povos indígenas uma verdadeira Mãe e Mestra.
Há muitos milhares de anos, nossos povos ameríndios têm manifestado respeito e veneração pelas Montanhas e os Vales, pelos Rios sagrados e os Mares; pelas Aves do céu e os Peixes do mar.  Nosso culto à Natureza não é coisa de agora, e sim de séculos de convivência com ela; da Natureza obtemos tudo para nossa vida: o alimento, as paredes e o teto de nossas casas, os instrumentos da caça e os instrumentos musicais, assim como os da cozinha, a lenha para cozinhar e tudo absolutamente tudo para viver.  Dela aprendemos a viver e viver bem.

“É urgente retornar aos ritmos da natureza; a Bíblia diz que fomos feitos de húmus (terra fecunda), os avós maias dizem que viemos do milho, e numerosos povos dizem que nossas origens vêm da mandioca e outros ainda que viemos dos mares.” (Atiliano Ceballo Loeza)
O chefe indígena Seattle escreveu para o Presidente dos Estados Unidos: “Ensina para os teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra fere também os filhos da terra. De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família.”

A terra é para os Povos Indígenas seu chão cultural, habitada por suas tradições, referência básica dos seus valores vitais, prenhe de mitos, campo de sua história.

Nas danças indígenas os cantos convidam os animais e os seres da natureza a se juntarem ao povo em festa. Na doença os índios conhecem o poder das plantas junto aos espíritos que as habitam e fortalecem.

 

A falta de respeito à terra é causa de doenças e de morte.

Davi Kopenawa Yanomami nos revela a visão do jovem pajé da aldeia Demini, frente à invasão dos garimpeiros na terra Yanomami em março de 1990.
OBS. Os índios não falam de maneira teórica, mas partem de sua experiência. Vamos lembrar que a invasão dos garimpeiros no final da década de ’80 acarretou a morte de cerca 15% da população índia. Dai a interpretação indígena a partir de sua cosmovisão.
“Quando a terra é agredida a xawara( epidemia) se espalha. Omanë manteve por muito tempo a xawara escondida. Ele dizia ‘Não toquem nisso!. Ele a escondeu nas profundezas da terra. Ele dizia ‘Se isso fica na superfície todos os yanomami vão morrer a toa’. Hoje os Nabëbë (brancos), depois de descobrirem a floresta, foram tomados por um grande desejo de tirar a xawara do fundo da terra. Xawara é também como chamamos booshikë, que vocês chamam minério. A xawara do minério é inimiga dos Yanomami e de vocês também.
Quando o branco tira o ouro da terra e mexe com ele em cima do fogo como se fosse farinha, sai fumaça. É a xawara wakëxi. Esta epidemia-fumaça se alstra pela floresta e pela terra dos brancos também. E causa doenças. Quando esta fumaça chega no peito do cèu, ele também começa a ficar doente. A terra também fica doente. Mesmo Omamë é atingido. Deosimë (Deus) também. Por isso que agora estamos muito preocupados.
Tem também a fumaça das fábricas. Vocês pensam que Deosimë pode afugentar essa xawara, mas ele não pode.. Sabemos que as coisas andam assim, por isso passamos estas palavras para vocês. Mas os brancos não dão atenção.
Os garimpeiros estão cavando o chão da floresta, por isso xawara cresce muito. Não é só os Yanomami que morem. Todos vamos morrer juntos. Quando a fumaça encher o peito do céu, ele também vai ficar morrendo. O trovão vai ficar doente e vai gritar de raiva, sem parar sob o efeito do calor…”

Penso em nossa sociedade que transformou a Mãe Natureza em mercadoria e que tira dela mais do que pode repor, destinando-a à destruição.

Perdemos o conceito que somos parte da Natureza e que os animais e as plantas são nossos irmãos. Como a sabedoria dos índios pode ajudar a nossa sociedade?

 

  1. 2.     INTEGRAÇÃO, DUALIDADE, COMPLEMENTARIEDADE
    As dimensões da vida são integradas,
    não separadas em compartimentos. A espiritualidade indígena não se encontra em momentos especiais de sua vida, mas em todos os aspectos, as dimensões e as etapas da vida: trabalho, festas, lutas, família e sociedade, sociedade e natureza, jovens e mais velhos. Neste sentido todos os momentos e todos os aspectos da vida são permeados pela cultura e pela ação de Deus.

Lembramos especificamente dois momentos da vida nas aldeias em que esta integração aparece mais nitidamente:

a)     O trabalho do plantio em mutirão : Onde o trabalho mistura-se com festa, socialização, encontro com a natureza e com Deus.
O mutirão do plantio começa com o convite  da família dona da roça. Alguém da família passa nas casas das famílias a ela ligadas, por laços de parentesco ou amizade e convida: “vem  tal dia na minha roça, vamos plantar!” No dia certo uma procissão de canoas com as famílias convidadas rema rumo a roça a ser plantada. Reparem! Grande é a alegria, frequentemente manifestada com cantos, e a roupa, principalmente das mulheres, é bonita. Chegando são bem recebidos e logo ganham fumo e bebida. Cada categoria de pessoas conhece a sua tarefa: os adolescentes pegam a maniva na beira do rio e a deixam perto dos homens de mais idade que cortam a maniva no tamanho certo para ser plantada; As moças “semeiam” a maniva, isto é:  deixam-na no lugar certo onde vai ser plantada. Chegam os homens mais jovens  que usando uma picareta cavam os buracos onde vai ser colocada a maniva. A tarefa de plantar é das mulheres que tiveram filhos, para que a maniva seja fecunda, isto é: dê uma boa produção. A intervalos regulares a família, dona da roça, distribui bebida e fumo. Todos têm direito e de vez em quando param, fumam e conversam. A grande parada é no descanso ao meio dia. Os donos trouxeram abundante comida e bebida: é aquela festa e troca de notícias! É o momento da confraternização! É o momento de brincar. Um pé de bananeira é colocado na devida distância e se formam dois grupos: cada qual lança as flechas. Quando alguém acerta é aquela exclamação de aprovação. No final contam as flechas fincadas no pé da bananeira e declaram quem ganhou. Mas não é uma competição para ganhar, é mais uma competição para agradar e relaxar. Não falta a oração e a convicção de que o resultado vai depender da terra, da chuva e da bondade de Deus.

b) Outro momento é o velório de alguém falecido. Onde a morte torna presente a vida e reforça a comunhão.
Depois de preparar o falecido/a, o pessoal visita a família dele. Chega, joga água benta no falecido, reza e frequentemente tem a reza comunitária. Os homens jogam baralho e dominó, comem e bebem bebida alcoólica ou café. As crianças, principalmente quando o falecido/a é de pouca idade brincam e cantam, logo fora da residência. No momento da despedida uma parte dos parentes e amigos do falecido/a se revezam contando as coisas bonitas que o falecido/a realizou ao longo de sua vida, na família e na aldeia. A morte não é momento de desespero mas passagem serena para outra vida.
Para nossos povos ameríndios não existe Vida sem Morte e vice-versa.  Ambas caminham juntas, muito coladinha uma da outra.  A agricultura ensinou-nos que a semente depositada na fecunda Mãe Terra, desponta para dar vida.  Nossas nações originárias são testemunho vivente da Páscoa.  Assim contam-nos as avós e avôs Kichés que falam da ressurreição de 400 rapazes mortos  que se converteram em sol e lua e nas estrelas de céu.  Assim o conta Marcos, uma das lideranças do povo Xucurú do Pernambuco, depois de que assassinaram seu pai  Xicão: “Nós não enterramos nossos mortos, os semeamos, para que brotem com mais força…”.

Complementariedade e Dualidade:

 

Complementariedade:  

O indígena olha o mundo e todos os seres que nele existem como um mundo harmónico, inter-relacionado: presente, passado e futuro; Céu, Terra e Profundidades; material e espiritual. No mundo andino para descrever essa interdependência se usa a palavra PACHA. Pacha é a palavra primordial; quando o Espírito a pronunciou tudo passou a existir. Ela permeia todo o universo e todas as existências. Pacha é vida que nasce e se transforma a partir do coração da mãe Terra. Pacha é mundo, espaço, tempo, vento, mar, memória e presença dos antepassados. “A cosmovisão olística, totalizadora, própria da sociedade andina concebe tudo o que existe como entrelaçado”  (GRILLO Eduardo).

A concepção e percepção do todo como algo único e absoluto nos vem das culturas ancestrais. Hoje este pensamento predomina no mundo científico, mas mesmo os expertos em física quântica reconhecem as intuições dos povos milenários sobre a inter-relação e interdependência de todas as formas de vida, aquilo que nós herdamos e nossos avós.

Todos os seres existentes se completam reciprocamente, não só entre as pessoas mas entre os seres existentes. Não se admite hierarquização, não existes seres superiores e inferiores e por isso falamos em diálogo e reciprocidade. Estes existem somente entre iguais. Ao mesmo tempo cada um está consciente e afirma a sua identidade para que exista a troca e o enriquecimento.  Por isso que nas aldeias  não se concebe um serviço feito a pagamento e nem uma autoridade que se considere superior aos outros. Como diz Jesus : “Quem quiser ser o maior seja o servo de todos”.

Dualidade:

O viver é concebido pela sabedoria andina como harmonia  existencial a partir da complementariedade de todos os seres em pares.

A divindade é par, como o sol e a lua; a humanidade é completa quando é par, homem e mulher; as pedras são macho e fêmea; e assim as montanhas, os campos. Inclusive a autoridade, entre os povos andinos, é exercida pelo homem e mulher juntos: o homem sozinho ou a mulher sozinha não tem força. Em nosso mundo amazônico, nas aldeias em geral o homem é posto em evidência e a mulher parece não ter peso na vida política. Porém, conhecendo mais profundamente descobrimos que os homens não tomam decisões sem consultar as mulheres que acabam apontando a solução dos problemas. Este é um aspecto peculiar da espiritualidade que tem muito a dizer e propor para a nossa sociedade.

Os povos originários de Abya-Yala enfatizam o feminino, de maneira particular na maternidade. No plano social, numerosas mulheres estiveram e estão a frente das lutas pela defesa da Mãe Terra.  Inclusive a referência à terra nos povos andinos, é um conceito feminino: Pachamama, ou a Deusa Asteca da Terra: Coatlicue.  Nunca poderei esquecer a valentia de Zenilda Maria de Araújo que ao ser assassinado o seu esposo, cacique do povo Xururú, pede-lhe para seu filho se manter à frente da luta pela defesa de sua terra.        E em nossa sociedade, em nossa igreja como hoje é valorizado o feminino?

 

  1. 3.      A partilha é o maneira natural do viver indígena.
    O comunitário está acima do individual, ou melhor: eu me realizo colocando a comunidade em primeiro lugar; só assim que encontro o meu lugar dentro dela e sou valorizado.
    A natureza vem de Deus  é dom gratuito. Então tudo que temos vem da natureza e será partilhado. Ninguém é dono dele. Como disse Jesus: “De graça recebeste, de graça deveis dar.” (Mt 10,8)

Outro dos aportes mais substanciais dos povos indígenas é nos serviços comunitários, previamente organizados cuja conclusão sempre é comum e festiva.  As Mingas e Fainas, o Potirõ e o Mutirão, o Tekío e o Trueque, o câmbio e intercâmbio das sementes são aspectos do trabalho comunitário em povos diferentes.  Não em vão, as comunidades aborígenes utilizavam por moedas penas de aves belíssimas, os panos de algodão, as pedras e algumas sementes como a do cacau.  Este valor da economia comunitária dá-se não somente entre as comunidades autóctones da nossa América, mas também em outros povos milenares.  A desgarradora e não tão distante experiência do “corralito” entre os irmãos e irmãs argentinos suscitou o renascer de uma economia solidária e de intercâmbio de bens e serviços.  Entre os produtores orgânicos e agroecológicos, de algumas regiões do Japão, estão ressurgindo práticas milenares de uma nova, e por sua vez ancestral economia, com moedas locais que lhes servem para obter produtos orgânicos.
Também entre os Povos Nativos do Brasil abundam exemplos na vida deles em que o comunitário está acima do individual.

— O caçador chega com um veado nas costas. Leva-o ao centro da aldeia e lá deixa. Outros vêm e repartem para todos.
— Na Transamazônica um grupo de Parakanã pára um carro e pede cigarro. O motorista dá o maço já aberto. Ao conferir e verem que não havia o suficiente para cada um receber um cigarro, devolveram o maço ao motorista.

— À noite em torno da fogueira, as histórias são partilhadas: tanto sobre o que aconteceu hoje na roça ou na caça ou pesca ou na escola, como também as histórias do tempo em que os animais falavam. E assim a cultura é passada de geração em geração.

— O trabalho de roça, de capinar a aldeia, de construir ou reformar casas, tudo é feito em mutirão.
— Eu terminei a mandioca em minha roça: tirei dela mais do que devia ou calculei o seu tamanho menor que a necessidade. E agora? Não tem problema: o meu vizinho tem roça grande. Ele, conhecendo a minha necessidade me convida: “Vai na minha roça e tira a mandioca que precisa. Eu vou, tiro mandioca e faço farinha; divido em duas partes e levo uma ao dono da roça: “Esta aqui a sua parte e muito obrigado.”

 

E na nossa sociedade qual o estilo de vida que prevalece?  O papa Francisco na Exortação apostólica EVANGELII  GAUDIUM fala da “economia  que mata”, da “desigualdade social” e da “exclusão” gerada pela nossa sociedade; fala da cultura do “descartável” e da globalização da indiferença.

 

  1. 4.     Simplicidade e alegria de viver.
  1. a.     Um mundo vivo e comunicativo:

A espiritualidade de nossos povos ameríndios permite superar a visão fragmentada da realidade que o Ocidente nos impôs, porque a espiritualidade indígena tem uma dimensão cósmica, íntegra e integradora, tudo está interligado.

Todos os seres têm vida e se comunicam entre si. No mundo indígena tudo tem vida. As montanhas, as pedras, ao água, as plantas, os animais, o vento, os insetos, tudo tem vida. É possível conversar e manter relacionamento direto com cada aspecto desta vida, com cada ser. Eu presenciei um índio conversando com a árvore que ia derrubar. Ele me explicou porque ia derrubá-la; ia precisar para sua casa, mas que ela ia renascer. Os índios contam como conversam com a saúva que invadiu sua roça. Como dizia para ela que tinha família e criança para alimentar e que não destruísse a sua roça. Que eles iam deixar uma comida para elas e que ficassem satisfeita com isso.
Contam os Aymara: “Dos nossos antepassados aprendemos a conversar com cada um dos seres que nos rodeiam: conversamos com a água, andamos acompanhamos a água, no caminho onde quer ir. Conversamos com as plantas de nossa roça e da mata. As plantas nos comunicam vida e recebem vida de outras plantas e das pessoas.. Conversamos com a chuva e com o vento, com os pássaros e com cada ser. Não existe ser sem vida.
No mundo indígena tudo tem vida. As montanhas, as pedras, ao água, as plantas, os animais, o vento, os insetos, tudo tem vida. É possível conversar e manter relacionamento direto com cada aspecto desta vida, com cada ser. Eu presenciei um índio conversando com a árvore que ia derrubar. Ele me explicou porque ia derrubá-la; ia precisar para sua casa, mas que ela ia renascer. Os índios contam como conversam com a saúva que invadiu sua roça. Como dizia para ela que tinha família e criança para alimentar e que não destruísse a sua roça. Que eles iam deixar uma comida para elas e que ficassem satisfeita com isso.
Contam os Aymara: “Dos nossos antepassados aprendemos a conversar com cada um dos seres que nos rodeiam: conversamos com a água, andamos acompanhamos a água, no caminho onde quer ir. Conversamos com as plantas de nossa roça e da mata. As plantas nos comunicam vida e recebem vida de outras plantas e das pessoas.. Conversamos com a chuva e com o vento, com os pássaros e com cada ser. Não existe ser sem vida.

A forte espiritualidade indígena se expressa no Bem Viver (Sumak Kawsay) que busca uma vida feliz com inter-relações em sintonia como o cosmo.

  1. b.     O mundo do SER e não da aparência:

A espiritualidade indígena não se manifesta com discursos, raciocínios e nem quer convencer ou converter. Ela se manifesta pelo ser, pelo agir, nas atitudes e respostas frente à natureza, ao semelhante, ao sobrenatural.
Entre os Povos Indígenas Deus não só está presente, mas se manifesta.
Conheço o pequeno povo dos índios Aikewar desde 1978. Na época contavam com +-80 pessoas. No final da década de ’60 somavam 39 pessoas, assim reduzidos pelas doenças, por ter sidos caçados pelos castanheiros e pelos índios kayapó. Fizemos amizade com eles e principalmente com os mais velhos. Ouvíamos  as história que eles contavam,  de boca aberta mesmo tendo dificuldade na compreensão. Com frequência, quando se dava a ocasião dançávamos com eles a dança tradicional chamada “purahai”. Não entendemos as palavras dos cantos: sempre mencionam os animais e elementos da natureza. Entoavam os cantos e conduziam a dança os mais velhos: Uaçaí, Areni, e outros. Olhávamos para eles que estavam de braços levantados e com uma expressão extasiada no rosto: pareciam em transe. Presenciávamos a presença do divino.  Entendemos quando encontramos no livro do Êxodo 34,29;35, algo muito semelhante : “Quando Moisés desceu da montanha, trazendo na mão as duas tábuas da aliança, não sabia que a pele de seu rosto resplandecia por ter falado com o Senhor!”  A gente podia mesmo perceber a presença de Deus.

Penso em nossa sociedade em que a aparência vale mais do que o ser; em que as pessoas são julgadas pela sua maneira de se apresentar e falar e a vida dois índios que preferem ser, viver.

 

  1. 1.     A festa – alegria de viver:
    A espiritualidade indígena é festa, agradecimento, gosto de viver.

    Poderemos o chamar de mil maneiras: música, dança ritual, tambores, caracóis, assobios e tantas outras maneiras de nomeá-las, porém os povos e as nações originárias levamos e vivemos o ritmo da Mãe Terra e da Vida em geral.  Os Yanomami se transformam em pássaros coloridos que em voos sinuosos se misturam com o ar, a floresta, os rios e tudo o que vibra sobre a face da terra. As primeiras avós e os primeiros avôs de nossos povos maias dançaram a dança da ariranha, a dança do pujuy(um pássaro muito bonito), a dança do tatu.  Em Pujulí, Equador, o Sacerdote da Chuva Tushug dança com alegria pela colheita do milho. 

Presenciando as festas indígenas me lembro de uma passagem do profeta Isaias 55, 1: “Oh! Todos que estão com sede, vinde buscar água! Quem não tem dinheiro venha também!   …comprar  sem dinheiro vinho e mel, sem pagar!”
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ESPIRITUALIDADE INDÍGENA  e CRISTIANISMO:

Quanto ao relacionamento com o cristianismo, é importante realçar que quase todos os povos já vivem uma mistura, devido ao contato entre estes povos e o cristianismo de diferentes formas. É bom distinguir entre o relacionamento no passado e depois do Concilio Vaticano II.

No passado, os povos indígenas souberam resistir e reformular a sua teologia e espiritualidade mesmo que dominados. Os Povos indígenas, assim como o povo pobre dos negros, ribeirinhos souberam apropriar-se da Bíblia, da teologia, da catequese, das devoções introduzidas e impostas pela sociedade neobrasileira, pela Igreja e reformulá-los a partir da própria experiência de Deus e de suas culturas. Encontramos esta reformulação na piedade popular. Esta reformulação é geral, mas o exemplo mais extraordinário e surpreendente é no evento guadalupense, que aqui usamos como paradigma.

O primeiro caminho para entender o evento guadalupense é a sua expressão  popular, que é muito profunda e exuberante. Trata-se da fé popular que se traduz em ritos, onde a linguagem total do corpo, do espírito, da vida, se entrelaça com os fios multicores que oferecem os símbolos do imaginário coletivo carregados de conteúdos profundos.

Outro caminho é a imagem da Virgem de Guadalupe, que é um verdadeiro código que mostra gráfica e glificamente  o pensamento religioso dos vencidos num esforço de diálogo com a sociedade colonial. Temos o primeiro relato das aparições, o Nican Mopohua  que apresenta em língua Nahuatl, de maneira narrativa e discursiva a visão indígena do mundo, da sociedade e da Igreja. É importante não tanto a história que narra, mas o sentido transcendente que tem a história para o povo. O Nican Mopohua  não é um texto histórico mas um texto teológico de incalculável valor para o seu tempo e para o nosso; é um paradigma para interpretar outras aparições e a piedade popular.
Estamos em 1531;  passaram-se 10 anos da conquista do México. Os Astecas são um povo dizimado. As crônicas falam de um povo massacrado em nome do Deus dos brancos. As cidades são destruídas, cheias de corpos em putrefação, de mulheres violentadas, de crianças assassinadas.
Os índios que sobreviveram se suicidam em massa, porque não somente foram vencidos, mas os conquistadores destruíram a religião deles, mataram a crença e os deuses.  O povo foi espoliado fisicamente e espiritualmente.

O anônimo de Tlaqltelolco ( escrito em nahuatl por volta de 1528) transmite a cena sinistra: “Pelos caminhos jazem dardos quebrados, os cabelos estão espalhados, destelhadas estão as casas, incandescentes estão seus muros. Vermes abundam por ruas e praças e as paredes estão manchadas de miolos arrebentados… Temos mastigado grama cheia de salitre, pedaços de adobe, lagartixas, ratos, terra em pó e mais os vermes”
Segundo a crença asteca, a derrota envolve também as divindades. No famoso diálogo dos doze apóstolos (primeiros franciscanos) com os sábios astecas, estes concluem: “ deixai-nos morrer, deixai-nos perecer, pois nossos deuses já estão mortos”.

Nesta situação um nahuatl vive uma experiência extraordinária, maravilhosa, de uma Virgem aparecida. O seu rosto é de mestiça e diz algo de inacreditável:

 “Juanito, olha que Deus está do lado de seu povo!”

O Deus vencedor dos seus deuses, destruidor de sua cultura, se apresenta através de sua mãe com rosto indígena, com roupagem e símbolos que evocam a vida destruída, com imagens que o povo entende, e diz que veio para ficar, para reerguer o povo moribundo, para dar nova esperança; não é o Deus dos vencedores, é o Deus dos derrotados que com Ele serão vencedores.

A Morenita veio para dar dignidade e esperança aos derrotados, e marginalizados, as vítimas da sociedade dominadora. A presença dela é a nova força dos fracos para triunfar sobre a violência dos poderosos.
Guadalupe é uma reformulação teológica e cultural a partir do choque com o mundo ocidental. Os Povos indígenas transformaram o desencontro em encontro. Apropriaram-se do anúncio evangélico e o inculturaram: Deus está ao nosso lado, ao lado dos vencidos dos pequenos. É uma verdadeira revelação de Deus ao povo dominado.
Nesse encontro nasceu uma nova forma de espiritualidade para aqueles povos, que até hoje permeia o relacionamento com o divino e norteia a vida.

O ambiente também é significativo: o monte Tepeyac e os cantos e as flores. A mensagem é expressa não com fórmulas dogmáticas mas com elementos que o povo entenderia como parte de sua vida de sua cultura  que Deus assumiu diretamente. (de um texto de Alberto Maggi)

Padre Eleazar Lopes, indio zapoteca faz também a sua exegese muito enriquecedora, junto a de Mario Perez Perez índio Nahuatl. Juan Diego mora em Cualtitlan = lugar da águias, mas que não podem mais voar. A caminho da catequese obrigatória no lugar dos franciscanos (Tlateloco) ele passa por Tepeyac – lugar de culto à divindade Tonantzin. Ele escuta lindos cantos, pássaros em coros diversos que o remetem  ao seu passado –Cantos e flores falam de toda a cosmovisão e mundo Nahuatl. Ele vai lá para ver, pois depois da conquista acabaram-se cantos e flor. É uma volta para ele. Ele sobe Tepeyac como um sacerdote indo ao encontro do sol. E lá, encontra uma mulher- linda, bela, resplandecente como o sol- Tonantzin=nossa mãe ou o sol em forma feminina- MULHER SOL. Juan Diego pensa que está sonhando. A mulher o chama para  seu lado e os dois ficam em pé conversando numa linguagem toda carinhosa. Ao chamar Juan Diego o menor de todos, ela não só fala com carinho, mas também em reconhecimento da sua condição de esmagado. Durante a conversa ela se declara mãe de Deus, usando a maneira de falar indígena da divindade, e mãe de Jesus Cristo. Ela pede que construam um templo (naõ  uma igreja) para ouvir e remediar os lamentos, misérias, penas e dores do povo e mostrar e dar amor, compaixão, defesa, ajuda e auxílio. Em outras palavras construir uma nova realidade para o povo indígena.

       Juan Diego não é recebido logo pelo bispo. Espera até o final do dia e finalmente entra. Percebendo que o bispo só escuta com ouvido e naõ com o coração, Juan volta a Tepeyac e diz para a mulher mandar outro, mas ela insiste que tem que ser ele. Ele volta e o bispo pede uma prova de que é mesmo a senhora do céu que o envia.

       Bernardino, tio de Juan Diego. Está doente,morrendo. Na cultura azteca o tio constitui uma figura respeitadissima. Sua herança, não ia para os filhos mas para os sobrinhos. O tio simbolizava a nação. Ele está doente e prostrado como a nação azteca. Neste dia Juan segue o caminho que passa por trás de Tepeyac, isto é olhando para o poente= aceitar a morte, aceitar que não há solução. Mesmo assim a senhora aparece e pede explicações. Quando Juan Diego fala de Bernardino, ela responde energicamente que o tio não morre desta e nem de nenhuma enfermidade, pois ela é a mãe do Deus Vivo.  É a Boa nova que Maria traz às nações indígenas.  Ele se levanta e fica bom. Com o tio ressuscitam as esperanças do povo.

E aí, neste lugar de espinhos e pedra em pleno inverno frio, onde não há possibilidade alguma de existirem flores, ela manda subir e colher flores. E lá Juan Diego encontra toda espécie de flores, das mais belas, até flores de Castilha  e as coloca no manto. Ele volta a ela, ela toca as flores e o manda ao bispo. Ele vai, deliciando-se com as flores ao longo do caminho.
Novamente, na porta, os empregados não o deixam passar. Tentam descobrir o que ele tem no manto, mas ele protege o seu conteúdo. Quando finalmente ele entra e vê que o bispo está escutando-o esta vez, ele aproveita e conta tudo longamente, em detalhes, sempre guardando as flores fechadas no seu manto. Enfim conclui : “ Aqui está o sinal para que seja feita a minha vontade”. Ele assumira  completamente o projeto da senhora. Caem as flores, fica a imagem dela no manto. O bispo cai de joelhos e pede perdão. Vai com Juan até o tio, o encontra com boa saúde, e manda construir o templo.

O relato contém uma crítica radical ao projeto colonial e também da Igreja. Juan Diego é capaz de distinguir entre o mal e o bem que existe entre os espanhois, inclusive alguns com que pode  unir-se, como o bispo.  Também o relato expressa o conteudo da Boa nova do próprio Evangelho para o povo índio. Unem-se Juan Diego com Juan Zumárraga. O projeto do futuro requer que se unam os dois: Teotl-Deus / Tonantzin-Maria ; Cantos e flores ; nahuatl-cristãos. Isto é muito além de qualquer proposta de hoje. Isto se torna possivel pelos  Waman Pumas de então e de hoje: os teólogos que tem, tiveram possibilidade de conhecer a fundo os dois mundos.

Juan Diego foi canonizado porque se submeteu ao bispo. Na realidade Juan Diego evangelizou o bispo que assumiu, se submeteu ao seu projeto e foi com ele. É santo porque é instrumento de transformação. Seria mais fácil uma solução excludente do que unir duas propostas.

 

A nova evangelização deseja esta união, mas na prática quer que prevaleça a instituição. Os 500 anos ainda não terminaram.

 

Leonardo Boff faz também a sua exegese ressaltando os elementos da cultura indígena presentes em Guadalupe.
“ Em primeiro lugar a Virgem Maria aparece com o rosto mestiço  e falando em nahuatl.
Usa a linguagem religiosa dos aztecas na forma quando se referiam a Deus: “Eu sou  a Mãe do Deus veríssimo, por quem se vive, criador das pessoas, Senhor do perto e do imediato, Senhor do céu e da terra”.

Aparece unindo o masculino (sol)  e feminino (lua e estrelas)como faziam os aztecas…A imagem é cercada por todos os lados pelo sol; embaixo está a lua; no manto as estrelas. Maria resume em si as duas divindades aztecas.

A túnica possui a cor de Huitzilopochtli, o deus da vida, a cor vermelho-pálida  que é a cor também do oriente.

O manto é da cor azul-verde as cores da divindade do céu (azul) e da terra com sua fertilidade(verde). Somente o imperador e a divindade podiam carregar juntas estas duas cores.

Maria aparece grávida com os símbolos que as mulheres aztecas usavam: duas faixas pretas caídas sobre o ventre..

Junto a elas está uma flor com 04 pétalas em forma de cruz (o caminho da humanidade) centradas pelo círculo central ( o caminho de Deus). Este símbolo azteca se encontra sobre o ventre de Maria, como para dizer: O que ela está gestando e vai nascer é o encontro entre Deus e os homens, Jesus.

No centro da gola da túnica, junto ao pescoço está a cruz cristã: ela é a mãe do Cristo crucificado para nossa libertação.

O anjo, com as asas típicas de um pássaro que vive nos trópicos mexicanos, que carrega a virgem significa a origem divina de quem aparece.”

As divindades não morreram.

Agora, sob a figura da Virgem de Tepeyac veio a salvação, a força de resistência e a coragem para a libertação.

 

Mario Perez Perez, sacerdote e índio nahuatl, afirma que a Virgem de Guadalupe, como símbolo de esperança e de libertação tem um lugar preponderante na memória do povo. Ainda, ela está repleta de símbolos que afirmam nossa identidade como povo mexicano. Nela, no discurso guadalupense, recuperamos o orgulho de ser índios. Eles relatam os acontecimentos históricos em que ela esteve presente. “Construiremos a nossa história nutrindo-nos em nossa cosmovisão religiosa.”
A devoção a Nossa Senhora de Guadalupe, nem sempre foi bem aceita e apoiada pela Igreja Católica, porque ia de encontro à mentalidade ocidental com que evangelizava.

A aparição da Virgem de Guadalupe, é um paradigma para nós entendermos as aparições também  no Brasil como a da Virgem Aparecida. O papa Francisco, em seu discurso ao episcopado brasileiro em 27.07.2013 faz uma interessante exegese da aparição de Aparecida  apresentando-a  como a chave de leitura para a missão da Igreja hoje.

 

 

O diálogo entre espiritualidade e cristianismo HOJE

Queremos agora apresentar outro aspecto do encontro  da espiritualidade indígena com o cristianismo nos dias atuais e a partir da nossa experiência direta.

                                Dizem que as grandes espiritualidades no mundo ocidental nasceram em momentos de crise. Hoje as culturas dos Povos indígenas estão criticamente ameaçadas; diremos que estão, a nosso ver, em crise.

As culturas sempre mudam, porque são uma resposta de vida à conjuntura que os povos enfrentam. Esta mudança precisa de tempo para ser assimilada e o povo encontrar uma resposta, isto é: um novo jeito de viver.

Porém, a partir do nosso presenciar e de uma pesquisa comunitária que realizamos  entre os Povos indígenas em Oiapoque sobre as mudanças nos últimos 30 anos, concluímos que as mudanças, hoje, seguem um caminho mais rápido que não dá tempo às culturas se adaptarem.

A cultura está mudando muito rapidamente e as vezes parece desmoronar por influências externas e por mudanças internas. Não mudam somente aspectos periféricos, externos, mas é a própria estrutura que muda atingindo até a maneira de pensar, avaliar e se relacionar.

O que determina estas mudanças?
Em primeiro lugar são os meios de comunicação, principalmente a televisão e até a internet. A televisão vai diretamente de encontro com a cultura, tendo muita influência principalmente entre os mais novos. Falamos também da energia elétrica. Antes quando alguém caçava ou pescava partilhava tudo com o restante da comunidade. Hoje com a energia elétrica tem o freezer e muitos preferem guardar o que pegaram para si ou então vender.
             A conquista dos direitos e a influência de organismos governamentais e não governamentais proporcionou ao índio o acesso ao dinheiro.. Junto com o dinheiro vem o contato mais frequente e facilitado com a sociedade externa, principalmente quando a aldeia é situada próxima às cidades. Parece que as mudanças nos últimos 30 anos, pelo menos em alguns povos, foram mais profundas que em muitos anos e até séculos de contato.

Frente a esta situação o povo precisa reconstruir a sua cultura através da tomada de consciência do que está acontecendo e reformular o próprio plano de vida. Neste processo a espiritualidade tem um papel fundamental e também a fé em Jesus Cristo. O povo precisa avaliar  as mudanças e projetar as consequências. É essa a vida que nós queremos? No final das contas o que ganhamos e o que estamos perdendo, ou perdemos? É o momento de se confrontar com as tradições dos antepassados, de reviver a mística e a espiritualidade. Se o povo indígena é cristão é chamado a  confrontar-se não somente com as tradições dos antepassados, mas também com o Evangelho. De um lado as propostas da sociedade globalizadora e do outro a tradição e o Evangelho.
Neste processo fica evidente que tem mais consonância entre os valores e a proposta das culturas indígena e o Evangelho do que entre o Evangelho e o mundo globalizado.
Neste sentido os Povos Indígenas com sua espiritualidade são chamados não só a encontrar respostas para reconstruir o seu projeto de vida, mas a contribuir para que a sociedade globalizada, a economia da morte, a sociedade da exclusão e injustiça social, a sociedade da competividade, reencontre o jeito de viver. Os Povos indígenas podem contribuir com as próprias Igrejas a ser sinal da presença do reino de Deus no mundo e a proclamar que ele é bom e viável.

Uma experiência atual é a caminhada da Teologia Índia dentro das  igrejas. Teologia não é propriamente espiritualidade, mas está a ela intimamente unida e dependente. A teologia ocidental determina o relacionamento com Deus e a natureza que vai de encontro à espiritualidade indígena.
Foram realizados já 07 encontros continentais a partir de 1990 e nós acompanhamos desde o 2º encontro continental em COLON, Panamá, em 1993.
A Teologia Índia nasceu, na década de ’80 por iniciativa de um grupo de sacerdotes e religiosas indígenas. Estes tinham sido tirados de suas aldeias ainda novos. No Seminário, ou Congregação foram despojados de sua cultura durante os anos de preparação. Com o renascer dos Povos Indígenas e as mudanças das Igrejas quanto às  culturas nos anos ’70 e ’80,  eles concluíram que não era necessário renunciar à  cultura de seu povo para ser cristãos, padres ou religiosas. Sentiram necessidade de recuperar suas origens. Boa parte tomou contato com seus parentes e amigos e, praticamente, foi reiniciado nas tradições de seu povo. Com estas riquezas propuseram às Igrejas  realizar esta mudança dentro delas mesmo, de suas comunidades.  Não foi fácil e não está sendo fácil. A Igreja olhou desconfiada: “Não é a Teologia da Libertação que está renascendo com outro nome e com outra roupagem?”  A Teologia da Libertação aprofundou a pobreza no seu aspecto social mas não na questão cultural . Tratou do pobre, mas não tratou do diferente.

  • Pe.  Eleazar explica o relacionamento entre Culturas e Igrejas:  “O Deus cristão podia sentar-se sem nenhum problema, na esteira de nossa história. Ele era perfeitamente compatível ou complementar às nossas crenças…Porém por parte dos europeus não houve a mesma atitude de diálogo. Por isso, nossos avós, vencidos pelas armas, tiveram que ajustar sua elaboração teológica às margens de ação permitida pela sociedade colonial. E continuaram para frente com a vida, fazendo elaborações e reelaborações de seus esquemas teológicos. É isso  que deu por resultado o que agora chamamos de Teologia Índia ou Indígena em suas múltiplas manifestações: seja em oposição radical ao cristianismo, seja em justaposição, em sincretismo ou síntese com ele”.
    Religiosos e lideranças indígenas trataram de refletir e fazer teologia com seu povo, a partir de sua experiência peculiar que tiveram com Deus e dos problemas que a comunidade enfrentava . A iniciativa envolveu as comunidades indígenas através de encontros de reflexão a nível local, regional, nacional e continental. Quem coordenou este processo foi a AELAPI-Articulação Ecumênica Latino Americana de Pastoral Indígena.
    A América Latina foi dividida em 06 regiões às quais foram acrescentadas as Igrejas cristãs não católicas.  O tema era refletido nos diferentes níveis até concluir com o encontro continental. Os encontros continentais se realizaram:
    • no México em 1990, com o tema “A metodologia da teologia Índia”;
    • em Colon-Panamá em 1993, com o tema : “A experiência de Deus nos projetos de vida dos nossos povos”;
    • em Cochabamba-Bolivia em 1997, com o tema : “ Sabedoria indígena, fonte de Esperança”;
    • em Asuncion-Paraguay em 2002, com o tema : “ Em busca da Terra sem males: mitos das origens e utopias como lugares teológicos;
    • em Manaus-Brasil em 2006, com o tema : “A força dos pequenos, vida para o mundo”;
    • em Berlin-El salvador em 2009,  com o tema “Mobilidade humana: desafios e esperança para os nossos povos indígenas”;
    • em Latacunga-Equador em 2013, com o tema : “Suma Kawsai: Bem viver e Vida plena”.

 

Desde o começo ficou bem claro que as futuras elaborações da Teologia Índia tinham que se nutrir das tradições indígenas e cristã para iluminar a fé de seus povos e de outros.

Os encontros eram publicados em espanhol por Abya-Yala do Equador. A partir de 2002 no Brasil o CIMI de Belém os publicou em português e espanhol junto com aporte dos assessores, acrescentando uma rica série de fotografias e um documentário do encontro. O material foi divulgado nas comunidades de origem dos participantes. Vale salientar que a média dos participantes foi em torno de 200 pessoas e a metade deles era constituída de índios.

        Os encontros foram ocasião não somente de reflexão teológica e indígena a partir da realidade, mas de partilha da espiritualidade principalmente pelos ricos sinais presentes na preparação do ambiente, nas orações e nas celebrações.

Aplicamos esta mesma metodologia com as nossas comunidades: ajudamos as comunidades a tomarem consciência da situação em que se encontram atualmente. Daí perguntamos:  Qual o futuro que queremos para as nossas comunidades: uma integração  à sociedade globalizadora e excludente ou então a reformulação do nosso plano de vida?

Para saber qual plano, apelamos para as tradições dos antigos e ao aporte do evangelho, levando em conta a religiosidade popular, com seus aportes e limitações.

 

Na maioria das aldeias a crença tradicional é misturada com o cristianismo; as vezes é uma síntese e as vezes uma bi religiosidade. É como no campo da saúde, onde persiste a utilização dos remédios de farmácia e a procura de enfermeiras ou doutores, mas, em outras ocasiões do pajé  e dos remédios naturais para tratar doenças que a farmácia não pode curar.  Eu experimentei, muitas vezes, a capacidade que os índios têm de inculturar e traduzir a fé cristã como resposta a situações da vida.
Uma das iniciativas que encorajamos e apoiamos foi a criação de cooperativas de vendas de produtos utilizados nas aldeias e vindos de fora. Até então eram os regatões que os traziam com inconvenientes: venda abundante de cachaça e aproveitamento sexual das moças. Em todas as aldeias funcionava uma revenda gerenciada pelas comunidades. Eu costumava dar uma olhada na contabilidade. Numa aldeia Karipuna cheguei no mês de fevereiro e notei, pelo livro caixa, que a maioria das famílias tinha pequenas dívidas com a cooperativa. Era algo geral. No momento do banho, nos campos alagados, junto ao coordenador da igreja perguntei o porque desta situação. Ele, no entanto que se ensaboava, me contou quase a contragosto: “Padre,  é o seguinte: quando celebramos o Natal fazemos a leitura do nascimento de Jesus em Belém. No final trocamos ideias e nos perguntamos: “Será que Jesus nasceu em nossa aldeia?” Entre outras coisas alguém disse: “Em nossa aldeia há homens doentes e mulheres viúvas. Eles não terão roça no próximo ano. Enquanto alguém passar necessidade, Jesus não nascerá em nossa aldeia.”  Todo mundo concordou e a comunidade tomou esta decisão: “ Antes de plantar as nossas roças vamos plantar as roças destes nossos irmãos. Atenção cada um de nós vai levar comida, fumo e vamos dar um jeito pela bebida.  E Adriano, o coordenador, continuou: “Padre, todo o mês de janeiro só trabalhamos para este pessoal. Nem torramos a nossa farinha para vender e todo mundo teve que fazer umas dívidas para ajudar os nossos irmãos. Mas agora já terminamos e cada um vai pagar a sua dívida.”  Amigos eu senti um aperto no coração: senti tanta vergonha porque nem comigo, nem com as nossas comunidades tinha acontecido algo assim. Senti-me  pequeno frente àquele povo simples que vivia deste jeito a sua espiritualidade e traduzia de maneira simples e direta o Evangelho. Aí cantei o meu Magnificat e agradeci a Deus que opera maravilhas com os pequenos e os povos indígenas. Isso é ser evangelizado.

Porém o caminho a percorrer e os desafios não são poucos: os índios precisam reavivar a própria cultura incorporando-a na época atual: o que pode mudar, o que deve ficar? Eles precisam ter nas mãos  e dominar os componentes do Cristianismo: Bíblia, Teologia, História, Moral e estrutura para eles mesmo realizar uma inculturação: o que serve e é constitutivo do cristianismo e o que atrapalha e é influência de uma cultura em determinados momentos históricos.

Neste sentido e por este caminho achamos que os Povos Indígenas podem contribuir e se apresentar como verdadeira alternativa ao mundo de hoje e à Igreja.

 

 

 

 

GUADALUPE

O encontro entre cultura, história e conjuntura,

Como resistência popular e afirmação de seu projeto histórico

 

XOCHITLÁLPAN (A Terra Florida)

Relato Náhuatl da Sierra Norte de Puebla, México

narrado e interpretado por Mario Pérez Pérez, de origem náhuatl

 

O mito de Xochitlálpan é do povo náhuatl. Náhuatl significa quatro águas. Nesta narração mítica se mencionam vários elementos. Um elemento é o ambiente de “flores e cantos”, o qual significa um entorno de sabedoria, de dignidade, de verdade, de respeito. Outro é o elemento da Palavra Antiga ensinada pelos mais velhos, que irrompe na história, no caminhar do povo, representada pelo peregrinar de Juan Diego.

Xochitlálpan, a vida em plenitude, a terra florida, a que se refere esta narração, localiza-se na parte alta da serra, Tepetzintli, porque em cima dela se une a humanidade, a “nossa carne”, tonacatzin, com a divindade, que é o lugar do umbigo que une Deus com seus filhos e filhas.

Para dirigir-se a Xochitlálpan deve-se peregrinar “até o lugar de onde a Luz provém”, onde amanhece, chegando até onde surge o Pai Sol. Lá, o povo se encontra com Tonantzin, “Nossa Digna Mãe”.

Quando alguém nasce é recebido com flores; quando alguém morre também é acompanhado com flores; levam-se flores aos mananciais, às serras, às covas, à semeadura. Os visitantes são recebidos com flores. Quando alguém recebe um cargo é coroado com flores. As imagens sagradas são adornadas com flores. Tudo isso para viver a Terra Florida, Xochitlálpan.

Em Xochitlálpan as pessoas se realizam, tal como aconteceu com Juan Diego, que enalteceu seu coração, se regozijou e se alegrou. Xochitlálpan é o lugar utópico da realização da criação: os seres viventes, as pedras, as palavras, os pássaros. Lá, tudo se torna precioso, formoso, reluzente, verdadeiro, bom, abundante, vivificante.

Havia um pequeno

homem pobrezinho,

o seu nome era Juan Diego.

Falava-se que tinha a sua casa em Quauhtitlán.

E no que se refere às coisas divinas,

tudo ainda pertencia a Tlatelolco.

 

Era sábado,

ainda muito cedo, pela manhã,

ia atrás das coisas divinas

e de tudo o que tinha sido ordenado, pedido.

E foi se aproximando do pequeno morro,

de nome Tepeyácac,

já quase reluzia a aurora na terra.

Aí escutou cânticos sobre o pequeno morro,

eram que nem cânticos de várias aves preciosas.

Quando interrompiam as suas vozes,

parecia que o pequeno morro respondia.

Muito leves e gostosos,os seus cantos ganhavam do pássaro

 coyoltototl,do tzinitzcan e de outras aves preciosas que cantam.

Juan Diego parou

e falou para sim mesmo:.

Por acaso mereço

o que estou escutando?

Estou talvez, somente,  sonhando,

ou estou acordando agora?

 

Onde é que eu estou?

Onde eu me vejo?

Talvez lá no lugar

onde falavam os nossos anciões,

os nossos antepassados, os nossos avós,

na terra florida, Xochitlálpan,

na terra do nosso sustento. Tonacatlapan, talvez

na terra celestial, Ilhuicatlapan?

 

Ficou olhando para lá,

para o alto do pequeno morro,

para onde o sol nasce,

de onde vinha o precioso

canto celestial.

Parou o canto,

não se escutava mais.

Então ouviu

que alguém o chamava

desde o alto do pequeno morro.

Falavam para ele: Juan Diegotzin.

Então ele tomou coragem

e foi para lá

onde era chamado.

 

Nada inquietou o seu coração,

e nem se alterou,

mas muito se alegrou,

ficou feliz.

Foi subido o pequeno morro,

foi ver quem o chamava.

E quando lá chegou

no cimo do pequeno morro,

viu uma nobre senhora

que lá estava em pé.

 

Ela o chamou

para ficar ao seu lado.

E quando ele se aproximou,

ficou muito maravilhado

porque ultrapassava

toda admirável perfeição.

O vestido dela

resplandecia como o sol,

desse jeito brilhava.

E das pedras e rochas

sobre a qual ela estava

saíam raios de esplendor

como pedras preciosas de jade

e como jóias reluziam.

Como os reflexos do arco íris

a terra se vestia.

E os mezquites, os nopales

e as outras plantas e ervas

que aí crescem,

pareciam plumagem do quetzal,

e as suas folhas pareciam turquesas,

e o seu tronco, seus espinhos,

reluziam como o ouro.

 

 

A cosmovisão indígena tem como base a religião. Esta é fruto da história de cada povo. Alfonso Caso, grande conhecedor do passado histórico dos povos do México, afirma que: “A existência (dos antigos) girava totalmente ao redor da religião e não havia um só ato da vida pública e privada que não tivesse um sentido religioso. A religião era o fator preponderante, e intervinha como causa até nas atividades que nos parecem mais afastadas do sentimento religioso, como os esportes, os jogos e a guerra.

Esta visão religiosa antiga nos faz ver a terra com veneração, a esta chamamos, com amor e com respeito “Nossa Mãe”, isto é, Tonana, porém da maneira mais digna a pronunciamos como Tonantzin, “Nossa Venerável Mãe”.

A dona da terra é Teocoatlaxiupe: “Teo” é Teotzin = Dios; coa, é coatl = serpente; tla é Tlali = terra; xiu, é xihuitl = ano solar; pe = começo. Estes cinco elementos são, sem sombra de dúvida, uma alusão ao Quinto Sol, também a Macuilxóchitl (cinco-flores).

Através disso Xochitlálpan está íntimamente vinculada a Tonantzin Teocoatlaxiupe. A expressão da religião dos povos indígenas tem sua formulação mais acabada em Tonantzin Teocoatlaxiupe, de forma que não se compreende a História dos povos mexicanos sem ela, sem Tonanzin Guadalupe.

Porém o fenômeno Guadalupense não se limita ao âmbito puramente religioso, mas afeta toda a vida. O fenômeno Guadalupense é um lugar de encontro, de comunhão na fé, de consolo, de esperança, de reflexão e mobilização coletiva. A Guadalupana está em todas as partes, não só nos altares. Está nas fábricas, e os operários  a invocam e confiam a ela os trabalhos. Está nas casas e nas esperanças das famílias. Está presente entre os intelectuais que inspirando-se nela produziram  algumas das melhores páginas dos nossos escritores como Fray Servando,  Clavijero, Francisco de la Maza, Edmundo O’Gorman e Octavio Paz.

Naturalmente está na própria origem da Igreja Mexicana e da força cultural e política que a caracteriza.

O fenômeno guadalupano é parte viva do nosso universo psicológico e social, de nossos mitos coletivos e da nossa dimensão nacional. Mesmo os que não somos religiosos somos condicionados por esta mentalidade. Eu não tenho fé porém, racionalmente, tenho que reconhecer que o processo de construção do mito guadalupano é deslumbrante por sua complexidade e riqueza: é um verdadeiro milagre da imaginação coletiva e das necessidades espirituais do País. Sou um guadalupano laico, por assim dizer” afirma Aguilar Camín.

A Virgem de Guadalupe, como símbolo de esperança e de libertação tem um lugar preponderante na memória do povo. Ainda, ela está repleta de símbolos que afirmam nossa identidade como povo mexicano, nela, no discurso guadalupano, recuperamos o orgulho de ser índios. O poder de unificação é fundamental. Novamente, o elemento religioso tem relevância.

Construiremos e reconstruiremos nossa história nutrindo-nos em nossa cosmovisão religiosa. Deste modo a Virgem de Guadalupe, desde sua aparição em Tepeyac (1531), para converter-se em protetora e “piedosa Mãe” dos índios, em Zinacatán, Chiapas (1709 – 1710), também em Santa Martha e San Pedro Chenalhó, a Virgem  desce do céu para aliviar as condições desamparadas dos índios; em Cancuc, em Chiapas (1712 – 1713), a aparição da Virgem é interpretada por Sebastián Gómez de la Gloria como o fim do tributo, das autoridades dos sacerdotes e do Rei da Espanha, e como augúrio de uma época na qual os índios gozarão de sua antiga liberdade; em Quisteil, Iucatã, (1761), a coroação de Jacinto Canek proclama o desaparecimento do poder espanhol e a criação de um reino indígena; o movimento milenarista tendo à frente Antonio Pérez, numa região situada nas ribanceiras do Popocatépetl e o Valle de Cuernavaca (1761), anuncia uma nova repartição da riqueza do mundo, o fim do domínio espanhol e uma era em que todos os bens voltarão ao poder dos nativos. E, recentemente, em 1994, se disse no México que, com a irrupção do E.Z.L.N., voltou a aparecer em nossa historia Juan Diego; porém Juan Diego nunca está sozinho mas sempre acompanhado de Tonantzin Teocoatlaxiupe.

Em todos estes casos a revolta social adota formas da expressão religiosa, porém em lugar de propor a felicidade no céu, propõe a transformação do mundo, convida a mudar as condições políticas e sociais existentes. As crenças, os valores e os símbolos que se manifestam nestes movimentos são religiosos, porém os fins e aspirações que os motivam estão baseados no desejo de uma mudança da realidade.

O fato mais importante da independência de 1810 é o nome carismático da Virgem de Guadalupe invocado na Paróquia de Dolores no momento em que Hidalgo decide combater com as armas, o governo espanhol. Depois de passar pela Paróquia de Atotonilco, Hidalgo toma a imagem da Virgem de Guadalupe que ali se venerava e a converte na bandeira dos insurgidos.

Todos, seguindo a tradição de fazer da Guadalupana um símbolo que muda as aspirações particulares de seus devotos, transformaram também a Virgem de Guadalupe numa Virgem combatente.

Por isso, não consideramos nossa religião como alienante, mas como o fundamento para a transformação da realidade.

 

ORAÇÃO DA VIRGEM DE GUADALUPE

Mãe, tu que trouxeste ao mundo o nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus Pai todo poderoso.

Ajudai-nos na nossa luta cotidiana

contra a crise social, econômica e moral que hoje suportamos.

Guia-nos nestes caminhos onde é difícil caminhar,

Que as tuas pegadas nos levem à divindade do teu filho

E do Nosso Pai Celestial.

 

 

Acompanha-nos com o teu olhar para podermos continuar

recuperando em cada passo a essência do nosso povo que não tem fim.

 

Dai-nos força em cada instante porque nós, os teus filhos,

somos simples na alma e na ida e somos da tua mesma cor.

Abençoa-nos como o fizeste sempre,

desde que te tornaste a Nossa Mãe,

e gravada sobre um manto ficaste na nossa Terra.

 

Sentimos o teu perfume na brisa da manhã,

nas flores que renascem,

nos tesouros que ainda ficam

escondidos no teu manto e que ninguém ainda descobriu.

Hoje queremos e necessitamos da tua bondade e do teu amor.

E a nossa identidade seja sempre uma árvore,

Ainda que sejam galhos curtos mas com uma forte raiz.

 

Mãe, somos os teus povos, somos a tua gente,

somos os teus filhos que caminham sob a tua proteção.

 

Reforça a nossa “União” para manter viva a nossa  cultura e identidade.

Alimenta o nosso espírito para sermos corajosos e fortes.

E defendamos o que é nosso, porém com humildade.

 

Mãe Nossa de Guadalupe, nunca abandones os teus filhos,

pois na tua luz reflete a esperança que precisamos cada dia,

que vem do teu Filho Jesus Cristo e Nosso Senhor,

que vive e reina pelos séculos dos séculos.

 

AMÉM.

 

 

EXEMPLOS DA VIABILIDADE DA REFORMULAÇÃO DO NOVO PLANO DE VIDA E DA INFLUENCIA NA IGREJA E NA SOCIEDADE

 

  1. Chicão e os Xukuru na reconquista de suas terras. “Os antigos contavam que ia chegar uma época em que o aro grande ia passar no pequeno. Eu presenciei isto”  A união com a natureza, as tradições antigas e maria das montanhas.  A força de Deus e dos encantados estão com os Xukuru.
  2. Raposa Terra do Sol: 30 anos de luta. Tudo começou em Maturuca: “ Não a bebida alcoólica e sim à comunidade”.
  3. Aikewar:  frente ao pedido de contar os mitos antigos diziam: “Ninguém sabe. Quem sabia já morreu!”  Frente aos contos bíblicos dizem: “ Nós também temos uma história semelhante!”  O dia do batismo comunitário foi o dia da revitalização das antigas danças: puharai!
  4. Karipuna, Galibi-Marworno, Palikur e Galibi-Kaliña: reavivando a própria identidade e descobrindo na união e fé em Deus o caminho para renascer. Eles formularam um verdadeiro programa de vida.
  5. Guarani: descobrindo na fé em deus a capacidade de resistir e não desistir da terra sem males.
  6. Quichê: da Guatemala. O encontro entre os vivos e os que partiram. 01 e 02/11.
  7. A caminhada dos religiosos e comunidade na Teologia Índia.
  8. A Igreja aprendeu a ser evangelizada.
  9. A sociedade, a partir dos anos ’70, revaloriza as culturas indígenas.
  10. A grande vitória dos Povos Indígenas na Constituinte: ’87-’88. É fruto da aliança e é a reconstrução do plano de vida a partir das mudanças na sociedade.

 


[1] As Bocas do Tempo.  Eduardo Galeano.  Século XXI