Encontro de Pajés: “Nossa resistência e nossa história são mantidas pela espiritualidade”

Era noite de lua cheia quando os maracás começaram a tocar na Terra Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu, no sul da Bahia, no último dia 12 de dezembro. A cabana do cacique Nailton Pataxó Hã-hã-hãe estava tomada por 30 representantes Pataxó e Tupinambá de Olivença, além indígenas do próprio povo do cacique. Por lá chegaram ainda os Xakriabá do oeste da Bahia (Coco) e do norte de Minas (São João das Missões). Com eles apareceram ainda os Mongóio-Kamakã de Vitória da Conquista. Após as boas vindas do anfitrião, por volta das 19h30, teve início um grande ritual que perdurou por toda a noite parando apenas às 24 horas.

Foi assim a abertura do Encontro de Pajés que teve como tema: “Nossa Resistência e nossa História são mantidas pela nossa espiritualidade”. A atividade correu até o dia 14, mantendo sempre a tônica das celebrações e da valorização da espiritualidade indígena. Previsto para 70 indígenas e indigenistas, o encontro reuniu 150. Com destaque para a espiritualidade, seus desafios, seus avanços e o que esperavam a partir deste encontro o segundo dia do encontro transcorreu em um ambiente de profunda reflexão e interação com os Encantados.

Ficou claro no depoimento de todas as comunidades a necessidade de se retomar com mais força a espiritualidade tradicional e a valorização das suas culturas, em especial diante do avanço de outras denominações religiosas. Muitas das vezes elas chegam desconhecendo e desconsiderando que as comunidades já têm e praticam suas ritualidades. Em especial os mais velhos foram enfáticos ao afirmar que é preciso barrar tal avanço que agride e desvaloriza costumes e tradições. Resistir a tais invasões deve ser feito com o fortalecimento dos rituais, com a articulação e valorização dentro das comunidades e no relacionamento com outras.

Foram citados vários fatos atuais onde a presença e a força dos “encantados” atuaram em favor da causa indígena, destacando a ocupação ao Congresso Nacional no dia 16 de abril de 2013, quando se percebe que nenhuma força humana conseguiria furar o forte bloqueio que impedia que os indígenas chegassem ao Plenário Ulysses Guimarães, da Câmara Federal. Os parlamentares se organizavam para criação de uma comissão que iria votar a PEC 215. Durante todo um dia de intensos rituais, no final da tarde, guiados por forças superiores, os indígenas ocupam e conseguem suspender a sessão do Câmara. Para Saulo Feitosa, membro do Cimi Nordeste, só existia uma explicação para o acontecimento: “Esta ação foi a força dos encantados, dos Seres de Luzes dos Povos Indígenas”.

Outro fato bastante citado foi o ocorrido no final e 2014, quando o perigo volta a rondar os direitos dos povos indígenas. No fechamento dos trabalhos parlamentares, a bancada ruralista e seus aliados tentam votar a PEC 215. Para um dos aliados dos povos que ali se manifestavam, Egon Heck, missionário do Cimi, ocorreu: “Algo jamais visto: quanto mais as forças policiais se multiplicavam em número, os rituais cresciam em força, em ânimo, entusiasmo e em respostas que para muitos parecem casualidades, mas que para os povos são providências dos encantados. Como, por exemplo, na primeira noite em que prenderam algumas lideranças indígenas, a chuva foi tão forte que o Congresso, não por acaso, foi invadido por lama e alguns parlamentares ficaram, por horas, ilhados naquele mar de lama”.

Encantos na luta

Os indígenas debateram ainda como as forças encantadas podem ajudar a enfrentar a conjuntura desfavorável aos povos indígenas. O missionário indigenista Haroldo Heleno, do Cimi Regional Leste, apresentou uma rápida análise destacando os vários instrumentos que visam suprimir os direitos indígenas duramente conquistados, em especial a PEC 215 e o PL 1610. A grande ameaça, no entanto, surge na forma de um decreto do presidente Michel Temer, elaborado na surdina, que modifica os procedimentos de demarcação de terras indígenas.

O decreto afetaria a demarcação de aproximadamente 600 terras indígenas em diferentes estágios do procedimento demarcatório. Entre os vários dispositivos graves previstos pelo decreto está a incorporação do “marco temporal”, uma interpretação restritiva do artigo 231 da Constituição Federal que, na avaliação das entidades e movimentos, serviria somente para “legitimar situações de esbulhos de terras indígenas, posses ilegítimas, irregulares e ilegais e, consequentemente, outras violações de direitos humanos dos povos indígenas”.

Haroldo Heleno recorreu a uma passagem bíblica para motivar a plenária. A História de Davi e Golias, já que muita gente gosta de citar o fato, sempre que temos um grande desafio pela frente, se usa a expressão: “Isto é uma luta de Davi contra Golias”. E se usa para dizer que é uma luta desigual, e alguns para dizer que não tem jeito. Heleno lembrou e fez questão de destacar que quem venceu a luta não foi o gigante, mas sim o pequeno Davi, que nem guerreiro era, e não usou nenhuma arma poderosa, usou apenas uma “boladeira”, mas Davi tinha dois elementos extremamente importantes para derrotar o gigante: a fé em Deus e a clareza de onde tinha que acertar a pedra, na testa do gigante, ou seja, ele tinha claro o seu objetivo.

Cacique Nailton afirmou: “É nestes momentos que precisamos ter uma certeza, devemos dedicar aos nossos rituais 50% de nossos tempos, para nos fortalecermos cada vez mais. Para enfrentar esta dura realidade os outros 50% a gente dedica ao restante: articulação, organização”. Nailton usou esta expressão em vários outros momentos do encontro, sempre no sentido de chamar a atenção para a valorização dos rituais. A noite em volta de uma enorme fogueira, e iluminados pela lua cheia, as conversas da tarde ainda borbulhavam nas mentes de todos, e um forte e intenso ritual nos acalmou com a presença de muitos encantados.

 

Mensagem encantada

Uma mensagem aos Pataxó e aos Tupinambá chegou por intermédio de um Encantado: “Algumas coisas não precisavam ser ditas, eles sabiam o que ia acontecer. Outras coisas não iam ser reveladas agora, mas que eram importantes e, portanto, todos deviam estar preparados”. Numa segunda manifestação, mais geral para todos os povos presentes: “Em alguns momentos teremos que perceber as coisas mesmo sem as ver, temos certezas que algumas existem, mas não a vemos, mas temos que nos preparar para enfrentar grandes desafios”.

Fortalecer os rituais em cada comunidade: esse foi o principal encaminhamento do encontro. O compromisso de todas as comunidades presentes na realização de rituais nas noites de lua cheia. Realizar pequenos encontros de lideranças religiosas nas regiões e mobilização desde agora para a realização do Encontro de Pajé de 2017.

O encontro teve como objetivo fortalecer a espiritualidade entre os povos da Bahia e convidados, além de promover o intercâmbio entre as comunidades e rituais. Para o cacique Nailton Pataxó Hã-hã-hãe o evento superou todas as expectativas, tanto na quantidade de pessoas que se esperava como nos objetivos propostos. “Já firmei o compromisso com as lideranças que aqui estavam que o encontro de 2017 vai ser aqui na cabana de novo, pois este foi apenas um tira gosto, e até lá vou visitar e incentivar outras lideranças que não puderam vir neste para se fazer presente no próximo”. O cacique afirmou que os encantados ficaram satisfeitos.